2/03/2021
Gestão Pública, Negritude Pública, Primeira Infância.

Primeira infância e negritude: quando o racismo inicia seu impacto na vida da pessoa negra?

Primeira infância e negritude: quando o racismo inicia seu impacto na vida da pessoa negra?

A primeira infância é o período da vida do zero aos 6 anos de idade, no qual temos a nossa maior janela de aprendizagem. Os primeiros anos de vida são como construir a estrutura de uma casa, que será a base sobre a qual todo o resto se desenvolverá. Essa fase, chamada de neuroplasticidade, é o momento crítico do desenvolvimento cerebral e da sociabilidade, em que desenvolvemos nossa capacidade para sentir, explorar, conhecer e aprender. E, por isso, todo estímulo e experiência, seja ele positivo ou negativo, impactam quem nos tornamos.

O cuidado, afeto, nutrição, as interações com os adultos, as brincadeiras e incentivos nas fases iniciais da vida podem ajudar o cérebro a desenvolver o seu potencial máximo. Por outro lado, fatores de risco como a violência, desnutrição, negligência e falta de acesso à educação de qualidade têm o efeito inverso.

Crianças com auto estima elevada se arriscam mais. São cientistas, sonhadoras e aventureiras. Com isso, enfrentam desafios, aprendem a lidar com frustração e desenvolvem persistência. Essas são trajetórias necessárias para o desenvolvimento cerebral, cognitivo e social. Porém, em um cenário nacional no qual o racismo é estrutural e a pobreza tem cor, estereótipos negativos são associados às pessoas negras e esse estigma afeta as crianças negras desde cedo na construção da auto imagem.

 

O que é o racismo na infância?

 

Uma prática comum do racismo é sua forma velada, quando a pessoa não percebe como seu ato é racista, porém esses atos impactam diretamente na forma como as crianças se percebem. Exemplos disso são associar beleza a pessoas brancas e a malandragem a pessoas negras; pentear cabelos lisos enquanto os elogia e, por sua vez, reclamar dos cabelos crespos, enquanto os chamam de difíceis e ruins; ensinar que lápis “cor de pele” é rosa claro, fazer elogios deturpados como “apesar de negro você é muito bom em (…)”, entre tantos outros. Essas práticas são acometidas tanto pelos adultos quanto entre as crianças, que por sua vez, reproduzem aquilo que veem.

 

O impacto do racismo no desenvolvimento da pessoa negra

 

Um grave fator de risco à saúde que costuma ser pouco explorado é a exposição ao racismo. Segundo o Center on Developing Child da Universidade de Harvard, que compilou estudos sobre como o racismo pode afetar o desenvolvimento infantil, os efeitos variam desde o aumento dos níveis de “estresse tóxico” até maiores chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta.

Os especialistas apontam que o enfrentamento constante do racismo sistêmico e da discriminação cotidiana é um potente ativador da resposta ao estresse. O que pode nos ajustar a compreender os fatores de origem, mas não determinantes, das disparidades raciais na incidência de doenças crônicas não transmissíveis na população. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, a população negra costuma apresentar uma maior incidência de diabetes mellitus (tipo II) — 9% mais prevalente em homens negros do que em brancos; 50% mais prevalente em mulheres negras do que em brancas — e, de maneira geral, possuem quadros de hipertensão arterial mais complicados.

Já o estresse tóxico, isto é, a vivência uma dificuldade forte, frequente e prolongada, sem apoio adequado de um adulto, gera riscos à construção da arquitetura cerebral das crianças. O que pode acarretar várias consequências a curto prazo, como transtornos do sono, irritabilidade, desenvolvimento de medos e piora da imunidade. E no médio e longo prazo, pode potencializar atrasos no desenvolvimento, transtorno de ansiedade, depressão, queda no rendimento escolar e propensão a um estilo de vida pouco saudável na vida adulta.

 

Uma infância livre de racismo é possível?

 

O enfrentamento ao racismo é uma tarefa de natureza coletiva e, infelizmente, é uma história que está longe de ter o seu ponto final. A solução ideal, vai além da transformação da consciência e passa pela elaboração de políticas que promovam mudança de comportamento.

No aspecto cultural, é importante inserir no imaginário infantil referenciais positivos sobre negritude, como heróis negros, bonecas negras, livros de histórias com mitologia africana e afrobrasileira, frequentar espaços afirmativos e com atividades de resgate cultural e de valorização da estática negra.

Além disso, é fundamental ficar atento à reprodução de racismo entre as crianças. É importante valorizar o discurso da igualdade, porém sem embutir o discurso de que somos todos iguais que, por vezes, esconde uma falsa ideia de democracia racial. Por isso, conversar com as crianças negras e não negras sobre diversidade racial, é um passo importante na desconstrução do racismo.

 

E qual o nosso papel enquanto líderes públicos?

 

A busca por uma sociedade mais equânime é o propósito de todo líder público e, por isso, a questão da diversidade racial deve perpassar pelo desenho e implementação de todas as políticas. Dentro do contexto da primeira infância é imprescindível o fortalecimento de uma educação antirracista, o que vai desde a elaboração do currículo e propostas de atividades escolares até a formação dos profissionais da educação sobre o tema.

Precisamos de profissionais preparados para discutir o antirracismo e agir diante de comportamentos de cunho racista entre as crianças, e precisamos também de uma escola que valorize o pertencimento, a diversidade e a histórica étnica-racial, por meio de um currículo multicultural e inclusivo. Para isso, a discussão sobre equidade deve estar em todos os âmbitos e esferas da política e da gestão pública. Ser, de fato, um compromisso coletivo, para a promoção de uma vida mais justa e menos desigual das próximas gerações.

 

Primeira infância e negritude: quando o racismo inicia seu impacto na vida da pessoa negra?

 

Maria Letícia Machado é pernambucana, cientista política e atua como pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

 

Nayara de Souza Araujo é paulista, gestora de políticas públicas, com especialização em psicossociologia da juventude e MBA em gerenciamento de projetos. Hoje atua na área de planejamento do Instituto Unibanco.

Ambas são Master em Liderança e Gestão Pública – turma 7 do CLP – Liderança Pública e membras da Rede Negritude Pública e da Rede MLG de Apoio à Primeira Infância.

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Natália Almeida Leite é jornalista formada pela FCL - Faculdade Cásper Líbero, com experiência em assessoria de imprensa, redação, marketing digital e audiovisual. Atua na Comunicação do Centro de Liderança Pública no cargo de Analista Pleno e é responsável pela produção do podcast Coisa Pública.

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