Reforma Administrativa: Nota Técnica CLP
- Introdução
Analisando a máquina pública no Brasil, nota-se que o atual sistema é pouco adequado para a prestação de serviços de qualidade com eficiência, tendo várias distorções e incentivos ruins os quais impactam negativamente a produtividade do servidor. Já há décadas não se realiza uma mudança significativa no que se refere à estabilidade demasiadamente ampla, a progressão automática e a falta de uma avaliação de desempenho efetiva, sendo todos esses desafios a serem enfrentados para a modernização do serviço público no Brasil.
Além disso, a estrutura de carreiras também tem distorções. Muitos servidores já ingressam no serviço público com remunerações elevadas alcançando, em pouco tempo, o topo da carreira. Como a progressão ocorre com base em tempo de serviço ou obtenção de certificação e não com base em entrega de resultados, em determinadas carreiras uma quantidade desproporcionalmente grande de servidores chega ao topo. Uma boa Reforma Administrativa terá de endereçar todas essas questões destravando a baixa produtividade do setor público e valorizando os bons servidores, essenciais para o país.
Com um serviço público mais moderno e eficiente, o poder público no Brasil será capaz de formular políticas públicas efetivas, transparentes e inovadoras que melhor atendam à população. O cenário atual de pandemia reforçou ainda mais a necessidade de termos um setor público que seja capaz de enfrentar problemas complexos.
Vale notar que, comparado com países da OCDE e mesmo da América Latina, o número de servidores públicos no Brasil não é alto. Segundo o Banco Mundial (2017), temos como proporção da população apenas 5,6% de funcionários públicos, enquanto nos países que fazem parte da OCDE esse número é, em média, de 9,5%. Na América Latina, a média é de 4,4%. No entanto, o gasto com pessoal ativo do Estado brasileiro está na faixa de 13,3% do PIB, número alto para padrões internacionais.
Importante ressaltar que não podemos tratar o serviço público como algo monolítico. Mesmo dentro da máquina pública existem grandes desigualdades. Segundo o Banco Mundial (2017), o coeficiente de Gini (que mede o grau de desigualdade, variando de 0 a 1) do setor privado era sete pontos menor que o do setor público até 2013. Já segundo os microdados da RAIS de 2018, em todas as regiões brasileiras, a diferença entre o coeficiente de Gini dos trabalhadores empregados pelo setor público e privado varia de 4 a quase 14 pontos dependendo do estado ou região, como mostra o Gráfico abaixo.
Fonte: Microdados da RAIS 2018; Elaboração própria.
Outro um foco relevante é o combate a privilégios que alguns segmentos do funcionalismo usufruem. A regulamentação do teto do serviço público, por exemplo, é uma medida importante tanto do ponto de vista das contas públicas quanto do ponto de vista moral. Por fim, também é importante a implementação de mecanismos mais meritocráticos no serviço público, com o servidor que progride na carreira o fazendo com base em avaliações de desempenho bem desenhadas.
Não obstante o elevado gasto com pessoal, nossos serviços públicos são precários, tendo baixa performance nos indicadores de educação, saúde pública e saneamento, mesmo em comparação com países de nível de renda semelhante. Os gráficos abaixo mostram a posição do Brasil em comparação a diversos outros países de PIB per Capita similar, colocando também em perspectiva o gasto com empregados no setor público em relação ao PIB.
Como se vê, em um conjunto de oito a nove países, há três países com nível semelhante ou maior de gasto com salários e benefícios trabalhistas no setor público: Equador (semelhante), Argentina e Sérvia (maior). Porém, há cinco países com população tendo maior acesso a saneamento básico e menor mortalidade infantil, e seis com melhor nota que a do Brasil na prova de matemática do PISA.
Fonte: Dados do Banco Mundial e PISA; elaboração própria
A distorção de relativamente baixo número de empregados no setor público e alto gasto com serviço público se deve aos altos salários de servidores com relação ao setor privado em comparação com o resto do mundo. No entanto, pode-se argumentar que tais prêmios salariais se devem a uma maior qualificação relativa do quadro de empregados no serviço público, tendo em vista que, no setor privado brasileiro, há um menor capacidade do capital humano, como escolaridade, o que justificaria os maiores salários no setor público.
Por outro lado, mesmo para um nível similar de capital humano, há um prêmio salarial desproporcional no Brasil, principalmente no nível federal e poder executivo, mas não apenas nestes. O Banco Mundial (2017) estima que, controlando por diversas características observáveis, como escolaridade e experiência, os servidores públicos no Brasil recebem 18% acima de seus pares de mesma qualificação no setor privado (puxado para baixo principalmente por servidores municipais, que teriam um prêmio negativo), o que colocaria o Brasil na média do resto do mundo. No entanto, um estudo quasi-experimental - ou seja, de maior precisão - recente do economista Araújo (2020) mostra que, ao se comparar trabalhadores muito semelhantes, cuja única diferença entre estes foi que, uns passaram em um concurso público por pouco (no limite das vagas), e outros que não foram aprovados por pouco (ficaram de fora), existe uma diferença salarial entre estes de cerca de 50%, bem acima do estimado pelo Banco Mundial - e que tende a estar menor do que a situação mais geral, pois em sua amostra 97% das vagas eram de concursos estaduais e municipais.
Além de termos uma máquina pública cara, os incentivos no serviço público são ruins impactando negativamente a produtividade de todo funcionalismo. Muitos servidores ingressam na máquina pública com remunerações elevadas, como mostra o Gráfico abaixo, e alcançam em pouco tempo o topo da carreira. A progressão ocorre, principalmente, com base em tempo de serviço ou obtenção de certificados e não baseada em entrega de resultados.
Além dos salários, é comum no serviço público os benefícios adicionarem grandes valores à remuneração dos servidores. O Gráfico abaixo mostra o rendimento habitual (apenas salários) e efetivo (salários e benefícios) por hora trabalhada de três categorias e trabalhadores: celetistas, informais e servidores públicos. Como se vê, há uma adição considerável à remuneração destes últimos com os benefícios – sensivelmente acima das demais categorias de trabalhadores no setor privado.
As consequências de tais distorções são duas: tanto a baixa qualidade dos serviços públicos, tal como mostrado no Gráfico 2, quanto o elevado peso do gasto com pessoal no orçamento público. O Gráfico abaixo mostra que, até 2017, o Estado Brasileiro destinava quase 10% de tudo que é produzido no país para remunerações de servidores, com tendência de alta desde 2012, mesmo em meio a uma crise econômica desde 2015.
Após esses pontos levantados, uma reforma do sistema administrativo do setor público se faz urgente, para objetivarmos melhores resultados e eficiência na prestação de serviços.
O que faz a Reforma Administrativa?
A Reforma Administrativa se orienta por três pilares: (i) Eliminação de benefícios distorcidos; (ii) Criação de diferentes categorias de servidores; (iii) Mudanças na gestão pública. Os pilares serão analisados separadamente.
- Eliminação de benefícios distorcidos
O primeiro propõe reduzir a distância entre o setor privado e público, com menos privilégios para este último. Como evidenciado acima, além das remunerações, há um numeroso conjunto de benefícios, auxílios, parcelas indenizatórias, parcelas complementares da remuneração, regulados por normas de diferentes naturezas (leis, resoluções, portarias, etc...) sem uniformização dentro do setor público.
Desse modo, está previsto na Reforma Administrativa a uniformização do tratamento desses “penduricalhos”, com a eliminação (vedação constitucional) dos seguintes:
1) Licença prêmio - direito que servidores públicos têm de, a cada 5 anos de efetivo exercício, gozar de 3 meses de licença. Enquanto sete Unidades da Federação têm licença de capacitação, as demais mantiveram a licença prêmio. Já o Governo Federal não tem mais esse benefício.
2) Aumentos retroativos - Aumento/reajuste de remuneração de uma categoria que também impacta salários passados.
3) Férias acima de 30 dias por ano – benefício mais presente no Judiciário, ainda que não apenas neste.
4) Adicional por tempo de serviço (anuênio) – Tal benefício atualmente é um dos principais pelos quais o gasto com pessoal aumenta mesmo em meio a crises e ajustes fiscais. Este determina que, a cada ano, o salário do servidor seja ampliado em 1% independente da entrega de resultados. Bom lembrar que o servidor já usufrui de reajuste salarial e ganhos salariais decorrentes de avanço na carreira. Estima-se que o custo seja de R$ 8 milhões ao ano apenas no governo federal, que já veda tal benefício para aqueles que entraram na máquina pública a partir do final dos anos 1990, enquanto nos Estados ainda há o pagamento regular deste benefício.
5)Adicional ou indenização por substituição não efetiva – Usualmente, servidores em função de chefia recebem um adicional por atuar como substitutos de outro em posição semelhante. Tal benefício muitas vezes é concedido mesmo quando o servidor fica à disposição, mas não é acionado. Com a reforma, ficar à disposição não será mais motivo de pagamento.
6) Parcelas indenizatórias não previstas em lei – Tal benefício tem como objetivo supostamente cobrir despesas, reembolsar o empregado de certos gastos, e, portanto, são consideradas de caráter indenizatório. No entanto, muitas vezes, acabam se tornando penduricalhos que servidores usam para ganhar acima do teto do funcionalismo (R$ 39,2 mil no Governo Federal), uma vez que tais ganhos não são considerados remuneratórios, desse modo não estão sujeitos ao teto. Estima-se que, apenas no Poder Executivo, cerca de 10 mil servidores ganharam acima do teto do funcionalismo federal.
O PL 6726/16, defendido pelo Unidos Pelo Brasil, estabelece uma regulamentação nacional de benefícios que seriam considerados ou não como indenizatórios, de modo a impedir a proliferação destes “penduricalhos” no setor público. A Reforma Administrativa, portanto, atua no mesmo sentido.
7) Aposentadoria compulsória como punição.
8) Redução de jornada sem redução de remuneração, exceto em casos de necessidade de saúde (servidor obrigado por questões médicas a cumprir jornada menor). É vedada a redução de jornada/remuneração para cargos típicos de estado.
9) Progressões ou promoções automáticas, baseadas apenas em tempo de serviço.
10) Valor recebido pela ocupação de um cargo ou função seja incorporado de forma definitiva ao salário após determinado período (5, 10 anos) – tal benefício, comum no serviço público, faz com que o salário médio dos servidores federais do executivo com Ensino Superior tenha um descontínuo aumento após 10 anos no mesmo trabalho, como mostra o Gráfico abaixo.
Adicionalmente à redução dos privilégios, a Reforma Administrativa prevê simplificação do desenho de cargos no setor público. Atualmente, foram identificados 42 planos, 117 carreiras, 2000 cargos apenas no Governo Federal. Nos entes subnacionais, tal complexidade também é elevada: segundo a economista Ana Carla Abrão, são 319 carreiras no DF, e, em média, cerca de 100 em cada Estado e cerca de 25 nos municípios.
As consequências práticas são servidores com atribuições similares e remunerações distintas, prejudicando a gestão de pessoal, transformando os Recursos Humanos do setor público em um setor meramente operacional. Desse modo, a Reforma Administrativa, via lei complementar, estabelecerá regras gerais para gestão de pessoal no setor público, buscando maior coerência e racionalização[1].
- Criação de novas categorias de servidores
A principal mudança proposta pela Reforma Administrativa é a criação de diferentes categorias de servidores, gerando distinções principalmente em relação à estabilidade. No Brasil, o Regime Jurídico Único engloba a totalidade dos servidores públicos, com modelo de contratação praticamente único, via concursos, na modalidade de servidores estatutários, com estabilidade praticamente plena.
A maior parte das democracias garante alguma forma de estabilidade para parte dos funcionários públicos. Entre os benefícios de tal garantia está a continuidade da prestação de serviços, a preservação das linhas de políticas públicas e a proteção do servidor e do estado de atos contra o interesse público, através da blindagem do servidor das pressões de governantes.
No entanto, poucos países desenvolvidos têm estabilidade plena à quase totalidade de seus servidores, tal como ocorre no Brasil. Na maioria dos países europeus, esses são, no mínimo, empregos correspondentes a determinados postos ou missões sob soberania nacional: juízes, soldados, fiscais ou funcionários da alfândega, polícia ou até funcionários ministeriais. No entanto, quanto ao resto, a fronteira entre funcionários estatutários e funcionários públicos varia de país para país: em alguns países, o primeiro pode representar até 90% do emprego público e, em outros, quase 15%.
Na França, a maioria dos servidores públicos - 83% em 2009 (DGAFP, 2011) - tem status de funcionário público, com status significativamente diferente daquele do setor privado em termos de segurança no emprego, remuneração, promoção e aposentadoria (Friot, 2012). Já na Alemanha, em 2003, ainda havia 1,7 milhão de funcionários estatutários, o que representava cerca de 40% do emprego no setor público (Bossaert e Demke, 2005, p. 32).
A Suécia, por sua vez, à primeira vista, aparenta ser o país com o maior setor público (31% da população ativa), mas em realidade a maioria esmagadora destes trabalhadores têm regras e disposições legais as quais praticamente não diferem daquelas de seus colegas particulares. Em realidade, menos de 1% dos funcionários públicos têm status de servidor estatutário, sendo a maioria deles juízes (Demke, 2005, p. 33). Neste país, a competição não é o método de recrutamento majoritário e, desde a década de 1960, as regras jurídicas públicas contribuíram para a aproximação entre o serviço público e o setor privado, principalmente em termos de remuneração individual vinculada ao desempenho e mérito (Modeen, 2004).
Na Grã-Bretanha, servidores civis, considerados como "servos da coroa", podem ser destituídos do cargo por decisão política, mas suas carreiras são relativamente protegidas pela legislação, que lhes concede direitos específicos. Estes, no entanto, representam apenas 10% do emprego no setor público, ou aproximadamente 550.000 trabalhadores (Bossaert e Demke, 2005, p. 32). Muitos agentes que realizam missões de interesse geral, como os magistrados e a polícia, estão excluídos. Muitos profissionais de saúde e educação são empregados por agências executivas, sem grandes diferenças com relação aos empregados no setor privado.
Por fim, na Espanha, o funcionalismo público é organizado em três carreiras, com heterogeneidade na natureza dos vínculos contratuais e funções exercidas. Há a carreira dos servidores civis que pertencem às corporações de Estado (1% do total dos empregados do setor público espanhol); os servidores civis locais, recrutados nas municipalidades (cerca de 50% do contingente de empregados do setor público), que estão inseridos em formas de trabalho mais flexíveis, como a adoção de contratos de trabalho por tempo determinado, e; os funcionários trabalhadores, que representam 49% do funcionalismo público espanhol (Alba e Navarro, 2008).
Como se vê, em países desenvolvidos, a estabilidade dialoga com o tipo de trabalho exercido pelo servidor público. Em geral, para funções perenes, que perpassam por diferentes governos, permanecendo ao longo dos anos, sujeitas também a pressões políticas, os servidores costumam ser “blindados” pela estabilidade.
No Brasil, no entanto, desde 1988, todos servidores públicos são estatutários, de modo a se beneficiarem de estabilidade independente da natureza da função exercida, mesmo os que possuem função de caráter operacional e de apoio. Tal característica do setor público brasileiro o coloca em uma posição distante de seus pares no mundo desenvolvido, como exposto acima.
Desse modo, tem-se que, no Brasil, um servidor público federal passa em média 28 anos em atividade, além de 20 anos como inativo, gerando adicionalmente pensão por morte para seus dependentes, que duram, em média, 11 anos. Este vínculo perdura, portanto, por 60 anos em média para todas as funções, tanto operacionais quanto de estado (estratégicas). Essa situação cria um elevado custo e rigidez nas contas fiscais.
A proposta da Reforma Administrativa para solucionar tais distorções no modelo atual de estabilidade é a adoção de um modelo que não se ampara mais em um único tipo de contratação, mas em diferentes vínculos distintos coexistentes. Estes são descritos abaixo.
- Cargo típico de estado – atuação própria do estado, funções que não podem ser transferidas para o mercado. Lei posterior vai estabelecer/categorizar quais atividades serão enquadradas como típicas de estado, essenciais e quais não são. Tal vínculo mantém a estabilidade, mas com etapa intermediária entre as provas do concurso e o ingresso no cargo, em que será estabelecido o chamado “Vínculo de Experiência”, de no mínimo 2 anos. A estabilidade seria adquirida após 1 ano do fim desses dois anos. Portanto, para adquirir a estabilidade, serão necessários 3 anos. Tal instituição substituiria o estágio probatório, que se tornou pouco efetivo, apresentando baixo desligamento de servidores (somente 0,2% no período de 2016 até julho de 2019). O “Vínculo de Experiência” será considerado como etapa do concurso público, eventual servidor estará sendo avaliado não tendo direito automático ao cargo
- Cargo por prazo indeterminado – Neste tipo de vínculo não se define limite da relação contratual em termos de duração, que dependerá da evolução tecnológica e das necessidades do país. Se a função exercida por aquele servidor for considerada obsoleta, por exemplo, o vínculo poderá ser desfeito. Lei posterior vai estabelecer mais claramente em quais hipóteses esse vínculo pode ser desfeito. Essa maior flexibilidade na alocação de pessoal na máquina pública já estava prevista na MP 922, defendida pelo Unidos Pelo Brasil, que perdeu o prazo de votação no Congresso, tendo sido incorporada, portanto, na atual Reforma Administrativa.
- Vínculo por prazo determinado – tal tipo de vínculo irá substituir os contratos temporários, que já são permitidos, mas são muito limitadas e pouco flexíveis. Esse tipo de vínculo servirá para atender situações temporárias e sazonais, com foco na natureza da demanda. A expansão desse tipo de contratação também estava prevista na MP 922, ainda que mantendo o status de “temporário”, tal como definido na lei atual.
- Cargo de liderança e assessoramento – tal vínculo vai substituir cargos comissionados e funções gratificadas, buscando promover maior unicidade de tratamento.
Vínculos temporários e cargos de liderança e assessoramento, também teriam outro tipo de ingresso, diferente do concurso público. Para estas novas categorias, seria criado o Ingresso por Seleção Simplificada – algo também já previsto na MP 922. Tal tipo de contratação tem maior agilidade e flexibilidade, mas deve ser feita de forma impessoal, por mais de um gestor, com decisão colegiada. Caso contrário, tal mudança poderia ter como consequência o aumento das indicações políticas em relação ao concurso, que tem como principal vantagem sua objetividade e imparcialidade
É válido mencionar que a Reforma Administrativa também prevê expansão das possibilidades de acúmulo de cargos no setor público, e mesmo com outros no setor privado, a depender do tipo de vínculo. Atualmente, é permitido acumular apenas dois cargos de professor, um cargo de professor e um cargo técnico/científico, ou duas funções na área da saúde.
A atual reforma prevê a possibilidades de acumulação de cargos total para os novos tipos de vínculos (desde que não haja incompatibilidade de horários e conflitos de interesse), tendo como exceção o Cargo Típico de Estado, que manterá as possibilidades de acumulação bem mais limitadas. Desse modo, a maior parte dos servidores a serem contratados no futuro poderão assumir também outros trabalhos inclusive no setor privado, permitindo maiores ganhos salariais em relação à situação atual, dando maior flexibilidade e vantagens para estes trabalhadores.
- Mudanças na gestão pública
Esse ponto da Reforma Administrativa se afasta da gestão de pessoal e se volta para a administração pública direta e indireta. São previstas como mudanças os seguintes pontos:
Possibilidade de o presidente, diretamente sem necessidade de projeto de lei, extinguir cargos e órgãos, reorganizar autarquias e fundações, transformar cargos (mantendo a mesma natureza de vínculo), mudando suas atribuições e funções. É vedado, no entanto, que tais mudanças acarretam aumento de gastos ou interrupção/não cumprimento da prestação de serviços públicos.
Tal mudança é, tal como identificado pelo presidente da Frente Parlamentar pela Reforma Administrativa, Tiago Mitraud (NOVO/MG), o ponto de maior controvérsia na proposta do Governo, com aumento excessivo de poder discricionário para o incumbente da presidência, que já conta com demasiados poderes no desenho institucional brasileiro.
- Maior incentivo para a contratualização por desempenho, buscando melhorar qualidade dos serviços públicos além de maior flexibilidade para órgãos da administração pública direta e indireta (com novos instrumentos de gestão fornecidos). Tal medida se aproxima do PLP 409, defendido pelo Unidos pelo Brasil, que busca estabelecer metas e indicadores de desempenho via Acordos de Resultados e Contratos de Gestão, para órgãos da administração pública.
- Considerações Adicionais
Algumas considerações adicionais devem ser feitas à proposta do Governo para a Reforma Administrativa. Primeiramente, um ponto positivo desta é que abarca tanto a União quanto Estados e Municípios. No entanto, os pontos questionáveis estão exatamente em suas exclusões, isto é, que membros de alguns poderes ficaram de fora. Estes são:
- Militares, promotores, juízes e parlamentares, entre outros
O Governo Federal seguiu o entendimento de que não teria legitimidade para englobar na reforma membros de outros poderes, isto é, do legislativo (parlamentares) e do judiciário (promotores, juízes, etc..). No entanto, primeiramente não há qualquer razão legal para excluir militares, que compõem o Poder Executivo e já mantiveram a maior parte dos privilégios na Reforma da Previdência. Em segunda lugar, o Congresso já está encaminhando sua própria Reforma Administrativa, além de ter maior legitimidade para tratar das categorias do Judiciário.
- Servidores atualmente na ativa.
O Governo Federal seguiu o entendimento de que haveria risco jurídico de aprovar uma Reforma Administrativa para servidores atuais, de modo a incluir em seu texto apenas os que seriam incorporados a partir de sua aprovação. Tal opção também tem um risco jurídico: de ter, na mesma função, servidores com diferentes benefícios e status de estabilidade, o que poderia ser visto como ausência de isonomia em determinadas interpretações de tribunais.
Por outro lado, estima-se que, na União, cerca de um terço dos servidores tende a se aposentar nos próximos 15 anos, dando espaço a grande renovação do efetivo. Com isso, no médio prazo, a Reforma Administrativa teria ainda grande impacto sobre os serviços públicos, mesmo sob tal restrição.
- Economia estimada
É possível estimar – ainda de forma preliminar e simplificada – o impacto fiscal da Reforma Administrativa. Para isso, serão usados parâmetros de aumento da isonomia do setor público com a iniciativa privada, sob a hipótese de uma aposentadoria linear dos servidores de todos os poderes na mesma tendência da União.
Para tal estimação, serão realizados três exercícios simples: (i) simulação da economia com a relação salário efetivo e salário habitual (por hora trabalhada) dos servidores equivalente ao de seus pares da iniciativa privada; (ii) simulação da economia com o reajuste nominal médio dos salários passando de 5% para 3,5% (meta de inflação do Banco Central), e; (iii) economia com menor número de contratação de servidores, devido a equiparação de horas efetivamente trabalhadas entre estes e seus pares na iniciativa privada. Os parâmetros para a realização de tais estimativas são da PNAD Contínua, que estão apresentados na Tabela abaixo.
Tabela: Comparação de salários e horas trabalhadas dos servidores e trabalhadores com CLT
Salário Médio Habitual | Salário Médio Efetivo | Horas Habitualmente Trabalhadas | Horas Efetivamente Trabalhadas | Relação Salário-hora efetivo e habitual | |
CLTistas | 2244.25 | 2427.70 | 43.01 | 41.17 | 1.13 |
Servidores | 4415.30 | 4762.46 | 39.34 | 36.58 | 1.16 |
Fonte: PNAD Contínua 2019
Tendo em vista haver pouco mais de 11 milhões de servidores em todos os poderes, será considerada a aposentadoria de 3,3 milhões destes até 2034. Desse modo, o Gráfico abaixo estima o impacto da Reforma Administrativa sobre as contas públicas ao longo dos anos.
Fonte: PNAD Contínua 2019; Elaboração Própria
Obs: Hipótese de inflação a 3,5% por ano.
A Tabela abaixo mostra os valores da economia acumulada com a Reforma Administrativa ao longo dos anos. Como se vê, em 2024, o setor público tende a economizar pelo menos R$ 24,1 bilhões (a preços de 2020), mesmo restringido a reforma apenas à novos servidores. Em 2034, o impacto fiscal acumulado chegaria a mais de R$ 400 bilhões.
Tabela 2: Estimativa Preliminar do Impacto Fiscal Acumulado da Reforma Administrativa
Novos servidores | Todos servidores | |
2024 | 24.1 | 157.9 |
2030 | 178.7 | 704.6 |
2034 | 403.3 | 1287.8 |
Fonte: PNAD Contínua 2019; Elaboração Própria
- Conclusão
O atual trabalho buscou se orientar por três grandes eixos: (i) exposição das razões pelas quais se faz necessária uma Reforma Administrativa no setor público brasileiro; (ii) discussão da proposta da reforma enviada pelo Governo Federal; (iii) estimativa preliminar de seu impacto fiscal.
Foi colocado que o Brasil, apesar de um alto gasto com folha de pagamentos, não tem tido sucesso em entregar serviços públicos de proporcional qualidade para população, mas quando comparado a países de nível de desenvolvimento semelhante. Tal fenômeno se explica, como argumentado, por diversas distorções no setor público em relação ao privado, que fazem com que gastos sejam acrescentados ao orçamento sem que provoquem melhores atividades exercidas pelos servidores, sendo caracterizadas portanto como privilégios.
A Reforma Administrativa, portanto, enviada pelo Governo Federal, foi, tal como apresentada, um avanço na discussão sobre a maior eficiência do poder público na prestação de serviços. Principalmente seus dois primeiros eixos discutidos, de eliminação de benefícios distorcidos e criação de novas categorias de servidores, poderá ter grande impacto sobre as contas públicas e a capacidade de aumentar a qualidade dos serviços públicos.
Finalmente, foi estimada, de forma preliminar e simplificada, a economia gerada pela Reforma Administrativa, assumindo equalização de determinados parâmetros com o setor privado e tendência linear de aposentadoria dos servidores, de modo a um terço destes estar fora da ativa até 2034 – tal como estimado que ocorrerá na União. Assim, foi evidenciado que o impacto fiscal acumulado da reforma pode chegar a R$ 24,1 bilhões até 2024, e, ao final de 2034, terá chegado a R$ 403,3 bilhões.
Referências Bibliográficas
Alba, Carlos R., and Carmen Navarro. Working for the government in Spain: from authoritarian centralism to democratic political devolution. Edward Elgar Publishing, 2008.
Araujo, Felipe. Selection Bias and The Returns to Public-Sector Employment. 2020. Disponível em http://www.pitt.edu/~fea16/JMP2019.pdf
Bossaert, Danielle and Demke, Christoph. Main Challenges in the Field of Ethics and Integrity in the EU Member States. Maastricht: European Institute of Public Administration, 2005.
Demke, Christoph. Are Civil Servants Different Because They Are Civil Servants? Who Are the Civil Servants– and How? Maastricht: European institute of Public administration, 2005.
Direction Générale de l’Administration et de la Fonction. Publique. Rapport annuel sur l'état de la fonction publique 2010-11. Ministère de la Fonction Publique, 2011.
Friot , Bernard. Puissances du salariat. Paris, La Dispute, coll. « Travail et salariat », 2012, 437 p., 1ère éd. 1998, ISBN : 978-2-84303-226-4.
Modeen, Tore. Droit du Nord. Notes sur le droit public finlandais et scandinave: origine, développement, état actuel. Paris: Société de Législation Comparée, 2004.
Mundial, Banco. Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Brasil–Revisão das despesas públicas 1, 2017.
Baixe o arquivo: Refoma Administrativa_Por que fazer- Nota Técnica
*Assinado por Daniel Duque e Pedro Trippi, da Inteligência Técnica do CLP (Centro de Liderança Pública).
daniel.duque@clp.org.br
pedro.trippi@clp.org.br